1972 foi um ano fundamental na história da música brasileira — momento de tristezas, alegrias, tensões, loucuras e intensa criatividade. A produção fonográfica era um reflexo disso: Clube da Esquina, Transa, Expresso 2222, Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets e muitos outros. A contracultura e o underground não só permaneciam em ebulição como alcançavam o amadurecimento e até mesmo alguma organização em meio ao caos. Gilberto Gil e Caetano Veloso voltaram do exílio e encontraram uma nova geração, a mesma que ficou por aqui, segurando a barra e aplicando os mandamentos tropicalistas. Em meio a tudo isso, surge o maior antídoto contra os miasmas e marasmos que acometiam o Brasil de 1972: Acabou Chorare, a obra-prima dos Novos Baianos.
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”. Baby Consuelo abre o disco, seguida por Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor, cada um cantando um verso de “Brasil Pandeiro”, o samba-exaltação do também baiano Assis Valente.
Para os Novos Baianos, João Gilberto era mais do que um mito: era um guru iluminado. Quando passou a frequentar a morada do conjunto, fez desaparecer “como que por encanto” todos os grilos e fantasmas que assombravam aqueles jovens, além de apresentá-los a “sambas que estavam sufocados pela antimemória nacional”, como lembrou Galvão. Mas os Novos Baianos também tinham cartas na manga em forma de samba, como “Besta É Tu”, cujo título se baseia numa onomatopeia famosa nas rodas de samba da Bahia, referente ao som tirado ao violão por aprendizes que não saem de duas notas. “Por que não viver nesse mundo se não há outro mundo?”, canta Moraes em tom de subversão, no contexto do Brasil triste, cinzento, sufocado e desinformado de 1972.
No que se refere à sonoridade rock de Acabou Chorare, o jovem Pepeu Gomes buscava uma distorção muitas vezes evitada (ou até mesmo temida) pelos técnicos de som do período, valendo-se de experimentações e soluções improvisadas, como o uso de capacitores retirados de um televisor pela intervenção do engenheiro de som Paulo César Salomão. Esse processo resultou nos timbres peculiares de sua Giannini Supersonic, perceptíveis em faixas como “Mistério do Planeta”, “Tinindo Trincando” e “Um Bilhete pra Didi”.
Uma abelha que singelamente pousou na mão de Galvão foi a inspiração para a faixa título, como relembrou o compositor em sua biografia Anos 70: Novos e Baianos: "Telefonei para João Gilberto contando que estava fazendo uma letra sobre essa relação com a abelhinha. João me disse: 'Fenomenal! Eu estava falando com o poeta Capinan, e ele lembrava que a abelha beija a flor e faz o mel, e eu gostei e completei: E ainda faz zun-zun’. Perguntei a João: 'Posso usar isso?' E ele aprovou dizendo: 'Deve'. Não parou por aí, João contou-me que Bebel, sua filha, quando eles moraram no México, levara uma pancada [...] e ele, preocupado, acudiu com a aflição de pai nessas horas, mas Bebel reagira corajosamente e, na sua inocência de criança, falava uma língua em formação, acalmando-o: ‘Não, acabou chorare’, e deu uma risadinha, escondendo a dor".
A mística e carnavalesca “Swing de Campo Grande” é uma das grandes contribuições de Paulinho Boca de Cantor para o LP. Foi inspirada no conselho de um rezador que lhes ensinara simpatias contra o “mau-olhado” e a repressão do regime militar, que os via como “terroristas fantasiados de hippies”. Paulinho encanta também ao interpretar magistralmente “Mistério do Planeta”, de Moraes e Galvão, hoje uma das canções mais celebradas do pop nacional.
Baby brilha em “A Menina Dança”, outra da dupla Moraes/Galvão, onde estava “tudo virado” e o “tempo regulamentar” já estava esgotado — alusões ao futebol e ao próprio cenário musical da época, que recebia Baby como um novo e promissor talento, esbanjando garra, atitude e personalidade. Também é Baby a vocalista de “Tinindo Trincando”, que traz um dos arrepiantes solos de Pepeu.
O maior sucesso do disco, da banda e do Brasil de 1972 foi “Preta Pretinha”, que aparece duas vezes no LP, em versões estendida e editada. O ímpeto criativo para escrever “Preta Pretinha” surgiu num momento muito bonito, logo após a casa dos Novos Baianos ter recebido a ilustre visita de Rogério Duarte e Glauber Rocha, que de tão à vontade até tirou um cochilo com os conterrâneos. A letra, romântica, vinha das experiências de Galvão não como poeta, mas como namoradeiro e galanteador que sempre foi.
Para muitos, o grande feito do álbum foi derrubar a barreira que existia até então entre a música brasileira e o pop. No meio disso tudo, encontra-se um gigante pela própria natureza: Acabou Chorare, impávido colosso da nossa música.
Esta edição do mês do clube de assinatura Três Selos Rocinante é em disco de vinil verde mesclado 140 gramas, inclui adesivos, panfleto e pôster com letras, curiosidades e texto do jornalista Bento Araujo, autor da série de livros Lindo Sonho Delirante.